Odenildo Sena*
Desses acontecimentos que se enraízam na memória e de lá se recusam a sair.
A igrejinha sempre ficava lotada nas manhãs de domingo às sete da matina. O horário era dedicado aos jovens. Eu devia ter uns dezesseis para dezessete anos. Minha presença era de ofício, na condição de um dos líderes do movimento que a gente chamava de Juventude Cristã em Marcha (JCM). E a homilia era sempre uma atração à parte.
Tiago, assim o tratávamos, sociólogo de formação, empunhava o microfone, descia do púlpito, misturava-se à plateia jovem e transformava aquele momento solene em uma descontraída aula que nos levava a saltar das páginas do Evangelho para a vida. Talvez aí estivesse o segredo do nosso encantamento.
Pois assim foi o sermão naquela manhã de domingo. Fala contundente, num português sem o mínimo sotaque de sua Holanda natal, Padre Tiago nos envolveu numa surpreendente reflexão sobre as nossas várias mortes e vidas.
Não! Nada a ver com morte e ressurreição, muito menos com o espírito deixar o corpo e transportar-se para um espaço celestial. Tiago falava das nossas mortes e vidas enquanto pobres mortais!
Dizia-nos, por exemplo, que uma pessoa muito competente naquilo que faz pode, num dado momento da vida, morrer para aquele ofício, mas renascer para uma outra atividade. O desafio, argumentava Tiago, era o cultivo da nobreza e da humildade para entender o momento de cada morte e reinventar-se para cada nova vida. Ou seja, a vida aqui mesmo vivida é cheia de mortes e ressurreições. Pois assim ficou essa lembrança enraizada em minha memória.
Entre minhas tantas mortes e vidas depois, aquele sermão do Tiago me acudiu em diferentes momentos. Passados vários anos, ao ler Cecília Meireles deparei-me com a assertiva da poetisa de que “a vida só é possível reinventada”. Lá estava o sermão do Tiago. E a força daquele verso passou a nortear minha vida.
Tempos depois, chefe de departamento na Universidade Federal do Amazonas, convivi com um colega que tinha sido meu professor no primeiro período do Curso de Letras. Idade já bastante avançada, memória hesitante, insistia em ir para sala de aula.
Depois de muitas reclamações dos alunos, criei coragem para falar com ele. Com muito jeito e tato, sugeri que cumprisse expediente em sua sala de estudos. Ao invés de ir aos alunos, os alunos iriam a ele, sempre que precisassem tirar dúvidas. Para surpresa minha, rechaçou a proposta com certa agressividade. Paciência! Considerei o dito pelo não dito. Lá estava o sermão do Tiago. Aquele meu ex-professor recusava-se a morrer para aquela prática e renascer para outra.
Quanto ao bom amigo Tiago Boets, soube recentemente que ele encarou uma de suas tantas mortes. Nada mais natural. Dor maior foi saber que ele, que me ensinou a reinventar a vida, não mais renascerá para outra. Sua memória já não atende ao seu desejo de reinventar-se. Foi dilacerada pelo tempo e pelo esquecimento.
(*) Esta e outras crônicas estão em meu livro A FELICIDADE PRECISA DE LOUCURA – Uma sinfonia do meu tempo em 115 crônicas escolhidas. Manaus: Editora Valer, 2022, p. 53.