Ainda estou aqui: os gritos do silêncio

Odenildo Sena*

Voltei a uma sala de cinema. Até onde alcança a memória, depois de sete anos entregue aos streamings da vida. E precisei ainda de alguma paciência. Não queria enfrentar uma sala lotada, na vã ilusão de que, quanto menos gente, mais o filme seria exibido só pra nós: eu, a mulher e o filho de vinte e um anos, que eu fiz questão de convidar. Mau costume deixado pelo hábito de ter o controle remoto ao alcance da mão.

Claro que não deu. Mesmo passados vários dias da estreia, mesmo sendo no meio da semana, mesmo sendo à tarde, as pessoas continuavam ávidas por aqui, no pedaço de Portugal onde a gente mora, por assistir “Ainda estou aqui”. Não teve jeito. Fomos assim mesmo. Resultado: até agora ainda estou aqui impactado com o que vi e senti durante a projeção do magnífico trabalho dirigido pelo Walter Sales Júnior.

Dos lances que me impressionaram, como não perceber a perfeita identidade da fotografia na primeira parte do filme, conduzindo o olhar da gente às nuances das cores cansadas que nos fazem entrar no terrível clima dos anos setenta no Brasil?

Como não observar que, depois dos primeiros quarenta minutos iniciais do filme, a partir da cena em que Eunice e Rubens Paiva trocam olhares de despedida que esparramam de sentidos silenciosos, a interlocução entre os personagens ganha um rumo surpreendente?

Dali por diante, e até a história saltar para um tempo mais à frente, as palavras ocupam um papel coadjuvante, e os personagens, com destaque para Fernanda Torres, passam a falar, sobretudo, com a força do olhar, ditando os novos rumos da ação numa estratégia sensivelmente reveladora do clima de opressão e dor que invade a narrativa. Walter Salles foi gênio em sua estratégia.

E quem não atentou para essa linguagem do silêncio, mas com sentidos tão gritantes que dilaceram a ansiedade da gente, deixou de sentir, na própria pele, o componente mais extraordinário do filme. E o mais admirável é que o silêncio da voz dos personagens, sempre comandado por Fernanda Torres, contagia de tal modo, que não se ouve da plateia um ruído, mínimo que seja, a demonstrar o profundo grau de seu envolvimento e a vastidão de sentidos que brotam desse mesmo silêncio.

Como não se dar conta de que o filme de Walter Salles não mostra cenas explícitas de violência e tortura física nos porões da ditadura, como outros que já retrataram os diferentes momentos do período de vinte e um anos do regime de exceção no Brasil? Mas como não sentir, no corpo e na alma, que os acontecimentos que se sucedem nas lacunas das vozes silenciosas e das expressões dos personagens são tão eloquentes, que se transformam em realidades aterradoras, a denunciar, pelo sumiço e assassinato de Rubens Paiva, o tamanho da dor e da herança trágica que o autoritarismo deixou no meio do caminho?

Como segurar as lágrimas diante do silêncio breve, mas profundamente cortante de Fernanda Montenegro nos derradeiros segundos do filme?

Por fim, mas não por último, porque fica tanto ainda a dizer, como não ser tragado, ao final da projeção, por aquele mar de silêncio dos espectadores, que deixam a sala sem provocar o mínimo ruído, como se tivessem sido previamente orientados para aquilo, compartilhando visivelmente entre si olhares salpicados pela dor e pela indignação?

Naquele momento, enquanto eu deixava a sala de projeção, me veio à memória que “Ainda estou aqui” é o grito escancarado do silêncio de todos os torturados e mortos pela sangrenta ditadura brasileira de 1964. De igual modo, me veio outra lembrança: as palavras do deputado Ulisses Guimarães na histórica sessão de promulgação da Constituição Brasileira no dia 5 de outubro 1988:

“Temos ódio à ditadura! Ódio e nojo!”

Não me lembro de outro filme brasileiro que tenha vindo ao encontro do povo em momento histórico tão oportuno. No Brasil e no mundo.

(*) UM LEMBRETE
Quem dizia era Jorge Luis Borges:
Se você não gosta de um livro, não o leia. Se não gosta de ler, não o faça. A leitura não é um modismo, mas sim uma forma de felicidade e não se deve obrigar ninguém a ser feliz“.

Então, eu suponho que, se você chegou até aqui, foi porque a leitura da crônica, de alguma forma, lhe fez bem. Ela ainda é inédita em livro. Se achar merecido, deixe seu comentário, ele será da maior importância para mim. Se tiver curiosidade em ler contos e outras crônicas minhas, eis as referências para meus livros mais recentes, disponíveis nas principais as plataformas:

O ÚLTIMO BIRIBÁ – Contos & crônicas para embalar esperanças. Manaus: Editora Valer, 2023.

A FELICIDADE PRECISA DE LOUCURA – Uma sinfonia do meu tempo em 115 crônicas escolhidas. Manaus: Editora Valer, 2022.

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Rádio Encanto do Rio