“PL do Estupro” – Inquisição Legisladora

Movimentos sociais em frente à Câmara de Vereadores de Maceió – AL, no ato contra o “PL do Estupro” (Mykesio Max)

 

Ai de Vós, mestres da lei e fariseus hipócritas! (Mt.:23)

Manifestação contra o PL do Estupro em São Paulo (Paulo Pinto / Agência Brasil)

Quando a cruz aliada ao comando de leis deterministas se impõe a desvalidas e desvalidos sociais, levanta-se a justa indignação e faz frente de resistência à transgressão legisladora sobre direitos individuais e pluriversais reafirmados na Justiça Social.

Nossa indignação é provocada pelo conluio do PL 1904, de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ) que naturaliza a gravidez infantil, embora resultado de estupro e qualifica em homicídio procedimentos justos de interrupção. Em se tratando de direitos universalmente ético-humanos, o tal PL é mais uma violação à autonomia das mulheres sobre seus corpos e vidas abusados e mercantilizados pelos padrões machistas, patriarcais ao longo da história.

À posição da Câmara dos Deputados (sob rédeas da remanescente inquisição) ressalta-se a conivência manipuladora de uma cúpula da Conferência Nacional dos Bispos Brasil (CNBB) em criminalizar mulheres vítimas de estupro e gravidez forçada… Tal fato traz a sábia e competente intervenção do escritor Eduardo Galeano, na Obra – Mulheres (1997). Nas palavras do Escritor Uruguaio, a naturalização do estupro, do feminicídio em terras latino-americanas têm suas raízes no processo colonizatório, quando os invasores, armados de cruzes, fuzis e espadas impuseram aos nativos a crença num “deus todo poderoso que criou os homens a sua imagem e semelhança, e dera a estes poderes para dominar tudo sobre a terra”. E reafirma o Escritor: “daí vem a matança de mulheres… As meninas sobreviventes foram domesticadas pelos assassinos sob repetições cotidianas que servir aos homens era o destino das mulheres. Elas acreditaram. Também acreditaram suas filhas e as filhas de suas filhas que continuam acreditando até hoje”.

Uma viagem no tempo, na história, reconstitui fatos e memórias que se entrecruzam com a postura da Câmara dos Deputados e o apoio da CNBB. Aproximadamente há 150.000 anos a.C., as primeiras comunidades humanas (sociedades matrifocais), viviam em perfeita harmonia entre os pares: mulheres e crianças eram naturalmente reconhecidas, respeitadas e tinham a proteção dos homens. Surge a descoberta dos metais (3.5000/a.C. a 1250/d.C.); avança a invenção de ferramentas, de armas e se implanta a propriedade privada: homens se tornam proprietários da terra, de escravos, de vulneráveis incluindo as mulheres que são destinadas à subserviência e à reprodução. Segue-se o feudalismo (476 a 1.500/d.C.), o mercantilismo (1.500 a 1.750 d.C.) e instala-se o capitalismo: mulheres e a Mãe Terra continuam dominadas e exploradas.

Neste período, quando o patriarcado e o capitalismo se apropriam da terra, das populações vulneráveis e particularmente das mulheres, a bíblia cristã, segundo ruídos estridentes sobre territórios submissos, consciências estupradas e domesticadas, fora escrita por “deus”. Paralelamente, o Papa Gregório IX, cria a “Santa Inquisição”, assim denominada pelo tribunal eclesiástico com o propósito de julgar crimes de heresia, recorrentes à época.

Dados comprobatórios relacionados ao conceito “deus” como autor/produtor dos registros bíblicos indicam um imenso vazio; há inquietações pertinentes sobre o real-concreto conceitual silenciado por dirigentes e lideranças defensores do conservadorismo que se auto identifica cristão. Nesse entrelaçamento entre o ser, o dizer e um fazer sistêmico conflitante com os anúncios de Jesus de Nazaré, diálogos e conexões com A Intenção Primeira*, com o Fogo-Logos* – matriz de sapiência, de vida, de harmonia, de justiça e amor-, fluem problematizações sobre o conceito – “deus”-, massificado por ceitas, religiões tradicionalistas, dogmáticas a serviço do empoderamento, do enriquecimento material de templos, pastores, padres, bispos…; sob exploração ideológica de “fiéis” analfabetizados, vulnerabilizados, empobrecidos, condenados a padrões e a rituais de violências oficializados por instituições do Estado com apoio de representatividades religiosistas inquisidoras.

Impossível calar também às contradições sistêmico religiosas: os mesmos legisladores que naturalizam a gravidez infantil e qualificam em homicídio procedimentos justos de interrupção, silenciam e abrem as porteiras ao mercado de anabolizantes hormonais para agilizar o crescimento e peso de bovinos, de aves destinadas ao consumo indiscriminado da população. Tais efeitos, segundo comprovações técnicas silenciadas, recaem sobre a genética humana: a grande maioria de mulheres/crianças menstruando entre 8 e 10 anos de idade, quando o considerado natural acontecia entre 14 a15 anos.

Apesar das tendências inquisidoras de lideranças religiosas contra à vida das mulheres, na contramão, Frei Betto contesta o PL 1904 e denuncia o “direitismo que nega às mulheres o direito de decidir sobre o próprio corpo, que não admite o aborto em determinadas circunstâncias, mas que apoia a pena de morte e aplaude policiais que matam bandidos e suspeitos de crimes”.

Na mesma frequência, o Pastor Henrique dos Santos Vieira Lima, Deputado Federal (PSOL – RJ) denuncia o uso do poder para criminalizar vulneráveis: “Quando foi que o evangelho se tornou essa máquina de salvar dogmas, enquanto condena vidas de pessoas? O que isso tem a ver com o espírito do evangelho de Jesus Cristo? O que isso tem a ver com amor ao próximo, com escuta atenta ao que as mulheres têm a dizer? Quantas mulheres das nossas igrejas são vítimas dessa hostilidade, desse estigma, desse preconceito e são condenadas e excluídas. […] Até onde o fundamentalismo religioso pode chegar?”.

Há muito a dizer sobre mulheres e categorias oprimidas… Há muito grito sufocado por instituições públicas, em hospitais, em delegacias… Há muita dor ignorada até mesmo em espaços ditos de defesa… Principalmente quando a vítima é desvalida, cidadã comum e o abusador é protegido por títulos, bens e funções de poder…

Quem lembra das mulheres encarceradas em relacionamentos abusivos, tóxicos, em casamentos oficializados, cujos corpos e vidas são transformados em propriedades dominadas por maridos, namorados, por acreditarem “que servir aos homens é o destino das mulheres” e, em consequência, gravidez indesejada… Quem as escuta e defende?…

Embora a “santa inquisição”, até hoje, ressoe como controle legalista sobre a vida das mulheres, não desistimos: Nossa luta é todo dia! Somos Mulheres, não mercadoria!

Foto da capa: Lideranças da Marcha Mundial das Mulheres em manifestação contra o PL 1904 (Maria Fernanda MMM)

Falares de casa

Intenção Primeira – Ensaio sobre a natureza do real. MOREIRA, Eduardo. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro/2023.

Fogo/Logos – O Mistério da Ética. BRUM, Alberto. Garbha-Lux, Brasília/2020.

Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Floresta Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário – Falares Cabocos.

Rádio Encanto do Rio