
“Em tempos de falsas felicidades… É como se qualquer emoção negativa precisasse ser escondida por uma falsa felicidade. A vida não pode mais ser como antes, mas é possível construir um novo modo de viver após o luto”. (Cartilha sobre Luto: Beatriz Gomes de Luiz – Práticas em Psicologia da Saúde/Clínica Pontifícia Universidade Católica de Campinas – 2020)
Fátima Guedes*
Em tese, o luto não se aplica exclusivamente a perdas via desencarnações; estende-se também a reações emocionais, físicas, comportamentais e sociais quando da perda de laços afetivos significativos independentes da materialidade. O luto é também concebido como silêncios a situações de caráter deprimente. É por aí: o silêncio imposto a enlutados sociais vagueia sobre escuridões, vazios, negligências, incógnitas e abre brechas divergentes a múltiplas interpretações até mesmo condenatórias.
Em representações figurativas o luto geralmente é manifestado na cor preta dada à ligação com a tristeza, com a ausência de luz. São sombras rastejantes sobre as mentes e emoções de afetados; medos e ameaças escondidas; são autocondenações ao que não se consegue confrontar e, muitas vezes, não conseguimos encarar. Comprovadamente o luto mais doloroso é o luto invisível, aquele sentimento reprimido como método de recolhimento e autodefesa.
A temática em referência retoma o caso da jovem Auriene da Silva Paiva, parintinense, da comunidade de Vila Amazônia, estudante de pedagogia, acusada por homicídio, na última semana do mês de junho, resultando-lhe em prisão imediata, isolamento total, sem direito à escuta: se culpada ou não.

Manifestações populares em busca por Justiça acolhidas pelo Advogado Criminalista, Paulo Guerra e Defensoria Pública forjam a abertura da grade prisional instituída apenas a desfavorecidos e, nesse contexto, a Jovem adentra numa outra grade – o luto invisível: as sombras que lhes rastejam a mente, a alma a impedem de alcançar a plena claridão sobre a utópica libertação. O luto silencioso abriga a invalidação da dor, da solidão imposta a categorias submetidas a estigmas condenatórios: em maioria mulheres empobrecidas e populações desvalidas.
Um breve olhar sobre a historicidade de Auriene em luto silenciado é possível decodificar situações invisibilizadas: já no despertar do envolvimento afetivo com o falecido, ou melhor, da relação abusiva em que se submeteu (certamente por carências e vazios desconhecidos) iniciara-se o pesadelo da Jovem. Na sequência das emoções sonhadas que profetizaram o luto, “tapas e beijos” deixaram digitais visíveis e indeléveis no corpo, na alma da Acusada, resultando em algemas antecipadas. Testemunhos confirmam!
Em pautas semelhantes reafirmamos: o conceito de amor difere de dependência afetiva. O primeiro se manifesta em cumplicidade, apoio, respeito mútuo, enquanto a dependência afetiva também conhecida como dependência psicológica ou emocional entorpece a percepção, cega a razão, o discernimento, ativa a submissão, a autorrejeição cujo desfecho são as tragédias bastante conhecidas. Comprovadamente é grande o número de mulheres submissas a controles, manipulações, ameaças, insultos, humilhações, isolamentos e etc. Segundo dados da Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS/OMS) uma em cada três mulheres em todo o mundo já experienciou de forma inconsciente os efeitos da dependência afetiva.
Outras abordagens sobre luto em contextos de violência de gênero, perdas podem advir de relacionamentos abusivos, até morte de parceiros sob a necessidade de se desconstruir ilusões românticas e identificar a origem do sofrimento.
A fé nas possibilidades nos leva a horizontes libertários. No luto, a morte se transforma em luta por renascimento, vir-a-ser… Mudanças e perdas são inevitáveis e abrigam mistérios inquestionáveis. A cura de dependências afetivas encontra-se na coragem e determinação em sobreviver às coisas ruins.
Já dizia Simone de Beauvoir “Que nada nos defina, que nada nos sujeite; que a liberdade seja nossa própria substância. Já que viver é ser livre”.
* Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Uma das Fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário – Falares Cabocos.