A Coleção de Águas Coloridas

16 de fevereiro de 1984

Na infância, eu era um menino muito magro e pálido, não gostava de muita brincadeira na rua, não sei se em decorrência do condicionamento doméstico ou pela minha própria natureza. Dispensava um grande tempo a desenhar, sobre qualquer suporte que aparecesse, até mesmo nas paredes. Mas teve um tempo que a minha animação maior era mesmo a minha coleção. Uma coleção de águas coloridas. Originada da dissolução do papel de seda ou crepom, em pequenos recipiente com água e assim, ia inventado as minhas diferentes cores. Não eram cores que chegassem prontas ou pudessem ser adquiridas numa quitanda ou livraria. Algumas, só apareciam quando se agitava o vidrinho. Depois das experiências com papel, passei a investir na área da medicina, passei a misturar água com mercúrio, iodo, violeta e qualquer outro produto que gerasse cor. Variava a quantidade de água e assim conseguia novas variações de tons. As peças eram todas expostas em pequenos vidrinhos transparentes, creio que recipientes da injeção de penicilina que conseguia com a tia Maria, que era enfermeira na Saúde. O conjunto ficava guardado numa caixa de sapato.

Aos poucos fui me tonando um verdadeiro alquimista, experimentei diferentes misturas das mais variadas substâncias, qualquer medicamento pigmentado que produzisse cor e felicidade. Em casa, reclamavam pelo espaço ocupado, pois a molhadeira se espalhava por diferentes lugares indevidos. Sem contar com o inconveniente de fazer desaparecer os recipientes de medicamentos ou de qualquer outro produto.

Tentando lembrar de onde teria vindo tal inspiração, lembrei de um passeio remoto, quando minha mãe me levou até a Drogaria Fink. Lembro de móveis altos, castanho caramelado e tinha uma grande escada para o mezanino superior. Mas o que mais me impressionou foi a presença de três grandes globos pendentes, contendo um líquido colorido e brilhante. Creio que nas cores amarela, rosa e azul. Ficavam num nível mais alto, muito acima da minha cabeça. Fiquei olhando de baixo pra cima, completamente embevecido.

Talvez, ao compor aquela coleção, estivesse tentando recuperar a mesma sensação que tive quando encontrei aqueles globos coloridos. Olhava para cada vidro como se fosse uma coisa encantada, parava pra admirar as cores e tons luminosos produzidos, como se nada mais houvesse pra se ver. Os pequenos vidros ficavam guardados numa caixa de papelão, escondida em algum canto da casa. Era tão preciosa, como uma rara coleção de cerâmica chinesa, dispunha cada peça no chão de madeira. Me sentia um criador, brincando com seus seres criados e combinados. Era uma coleção rara, muito importante e que poucos tinham notícia. Sua fama não ultrapassava a cerca do quintal do vizinho, mas é possível que dentro do limite de casa, pudesse ser visto como um estrabismo mental.

Algum tempo passou. O menino se desfez das águas e dos vidros, mas continuava colecionando coisas e experiências. Hoje, certamente não faz teatro com bolinhas de gude, mas é muito provável que faça teatro com seus conhecidos. Só que agora, não é o diretor, roteirista e falador, mas apenas ator enfrentando situações que lhe determinam textos. Hoje, os textos estão nas esquinas, nos bares, nas repartições, nas igrejas, nos palácios e nas mesas de casa. Pouco dizemos fora deste texto. Estamos sendo dirigidos por um menino que faz coleções e somos apenas uma peça do jogo ou da cena.

Curioso, um ou dois anos depois, desse escrito; tive o prazer de encontrar os globos coloridos, pelo menos dois deles, no escritório de uma produtora de vídeo da amiga Natacha. Eles estavam lá, semidesmontados, mas o que mais me surpreendeu foi a altura do pedestal, batia na altura dos meus ombros. Conclui que a medida que crescemos o mundo vai diminuído.

Rádio Encanto do Rio