Chamados

Fátima Guedes*

O tição agoniza nos braços da cinza

A panela esfria…

Chama, que me chama, acorda esta chama e chama os que dormem nas cinzas da selva.

Frente à impactante realidade mundial, um comparativo entre as antigas sociedades e os padrões de modernização sobre a vida – em sua natureza mais profunda-, atrevo-me afirmar: impossível conquistar ou construir sobrevivência digna para todos os seres (indistintamente) sem o resgate e aplicação das práticas comunitárias vivenciadas por nossos ancestrais. Um grito que não dá pra calar ou disfarçar: chegamos ao limite dos abusos ao ventre Sagrado da Mãe Terra.

Sem dúvidas, o mês de junho nos evoca olhar para além do tecnicismo, do desenvolvimentismo (in)sustentável e acolher os ensinamentos da Mãe Terra – nutrientes indispensáveis na construção da teia da vida*. A cada catástrofe um chamado de atenção; um ato educativo provocador de diálogos em defesa da Vida compatíveis às vivências das antigas sociedades em suas relações com o Planeta.

O mês de junho, naquelas sociedades, era dedicado à Deusa Romana, Juno – padroeira dos casamentos e das mulheres. Durante todo o mês, cultuava-se o lema: energia e poder de decisão para enfrentamento de problemas e obstáculos. Portanto, Juno era considerada a “porta do ano” abrindo caminhos para o Sol entrar, fortalecendo as energias e consolidando os ganhos. No Egito, correspondentemente à lunação do 5 de junho, cultuava-se a Deusa Uto ou Uadjit, “a deusa sempre verde”, a regente da vegetação*. A personificação do nome associa-se aos poderes regeneradores da Terra.

É provável que a ONU se fundamentara nas antigas tradições e, em 1972, decretou a data cultuada por aqueles povos – Dia Mundial do Meio Ambiente. Acredita-se que o propósito da ONU focava nas limitações sistêmicas para frear impactos destrutivos aos bens naturais já bastante ameaçados pela “revolução verde” e o surgimento de um estado patológico de amnésia coletiva ou memoricídio biocultural*; na manutenção de práticas, sabedorias, dinâmicas tradicionais de cuidados comunitários e ao mesmo tempo instigar o mundo, movimentos e militâncias sociais ao enfrentamento do caos instalado a partir de estratégias originalmente sustentáveis.

De nosso íntimo inquieto, transgressor de transgressões sistêmicas, a “Deusa regeneradora da Terra” nos aponta direções, caminhos de cuidados às necessidades fundamentais de nossa Casa Comum – abrigo de humanos, bichos, solos, florestas, águas, pedras… diversos e unos simultaneamente. Por essa trilha, “chamados” nos levaram ao Divino Desconhecido adormecido em nós: brecha ímpar de conexão com sabedorias matriarcais de cuidados e curas. Assim, durante os dias 19 a 28 do mês de abril deste ano, catorze mulheres de diferentes estados e culturas sentiram-se acolhidas pela Academia de Curandeiras – Xamanizando, em São Francisco Xavier, Distrito de São José dos Campos/SP, respondendo ao “chamado” da Grande Mãe. Em plena sintonia com a “Sabedoria Cósmica”, trilhamos juntas os “Sete Caminhos Iniciáticos da Mulher”. Em cada novo “caminho”, “Despertares de Sagradas Medicinas” nutridas com amorosidade, trocas, metodologias e princípios alinhados e entrelaçados à Divina Sapiência Matrifocal.

Iniciara-se ali a semeadura para novos tempos com jeitos e modos justos de preservar e conservar o Sagrado Ventre da Terra: inquietações que fluem de compromissos militantes advindos de uma consciência matrifocale se oferecem como desafios interventivos e transformadores.

Em remate, as “Sagradas Medicinas” reativaram nossa íntima ligação com a Mãe Terra e com a necessidade de uma coexistência pacífica entre todos os seres – filhos e filhas da mesma Mãe – fecundados a partir de um místico orgasmo que avança sobre o tempo, sobre a história, alcança o aqui e o agora, numa tessitura universal, unindo semelhantes, semelhanças, diferentes e diferenças: o ventre que nos permite vida e sobrevivência é abrigo comum, milenar…

Ainda que neguemos origens e laços, todos e todas, indistintamente, um dia retornaremos à matriz. Só o tempo e a crença nas possibilidades de uma nova consciência, de um possível resgate ao princípio criativo da vida, da ligação de todos os seres à tessitura universal alinhada às antigas reverências e cuidados pluriversais, trarão as justas respostas.

Falares de Casa

Deusa Uto ou Uadjit – Referência na Obra, O Anuário da Grande Mãe (Mirella Faur, 2015, p. 179)

Memoricídio Biocultural – Estado de sonambulismo, de dormência sociocultural com reflexos destrutivos a um pleno e sadio desenvolvimento humano. (TOLEDO e BARRERA-BASSOLIS, 2015, p. 255)

Teia da Vida – […] a natureza não nos mostra blocos de construção isolados, mas, em vez disso, aparece como uma complexa teia de relações entre as várias partes de um todo unificado […] (Fritjof Capra -1996)

Foto de capa: Devastação – Crédito: Floriano Lins

Fotos internas: Tenda Vermelha 1 e 2 – Crédito: Mulheres Medicina

* Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia com Especialização em Estudos Latinoamericanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras Ensaio de Rebeldia, Algemas Silenciadas e Vestígios de Curandage. Organizadora do Dicionário Falares Cabocos.

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